26.6.09

diários #21




De noite todos os gatos são pardos. Corpo derramado no banco, pernas em ângulo aprisionando outras pernas. Em náusea, pernas aprisionadas procuram espaço, pé direito a levantar-se na mira da junção do ângulo, repentinamente mudam de direcção e saltam o lado exterior do triângulo. Corpo endireita-se, distancia-se no corredor entre os bancos, espera a paragem e a abertura da porta. Os passos caminham certos de que de noite nem todos os gatos são pardos. Lá dentro não se distingue o dia da noite, apenas os néons reluzentes e chamativos das lojas. Olhos a escolherem tecidos e cores, mãos irritadas a recolocarem tudo nos sítios, sensatez da espera do avanço dos dias e da diminuição dos preços. Culpa da magreza dos euros, culpa da crise que sopra de fora e aumenta a aragem de dentro. Noite a cair no pátio aberto, café na chávena a amornar o fresco e os lábios, olhos sonhadores, poderosos, a lembrarem tardes italianas na piazza navona. Olhares a cruzarem sombras, encostados à pausa para o cigarro, expirando anéis de fumo vazios como a vida. Junto ao pilar de mármore que nada suporta e de longe se assemelha a uma caixa oriental, outros olhos, olhos cúmplices de solidão profunda, a murmurem em silêncio: de noite todos os gatos são pardos. Último golo de café a negar a frescura da noite, passos a afastarem-se no pátio certos de que todos os gatos se distinguem.

4 comentários:

JFDourado disse...

Consegues transmitir com este texto um vislumbre de vidas vazias, resignadas à melancolia de uma existência que se limita à sobrevivência e às rotinas do dia a dia. A maioria portanto.
Gostei :)*

Hugo Milhanas Machado disse...

Não tem casa mais confortável.*

moriana disse...

gosto de observar, gosto de sentir o palpitar da cidade :)

bj.

moriana disse...

então, há que escolher o canto mais acolhedor e aninhar a alma :)